sábado, 18 de novembro de 2017

Crônicas de Agartha: As viagens de Varegue, o Jovem - Parte 2

As ancas grandes e as cochas grossas balançavam suavemente poucos metros à minha frente. Orinde, a guerreira núbia que nos acompanhava apeara algumas horas antes, assim como Silvo, o batedor da tropa regular de Santa Daoid. Eu permanecia sobre o baio gozando do conforto que apenas uma longa cavalgada poderia proporcionar, perdendo meu olhar de tempos em tempos na paisagem das montanhas ou do corpo de Orinde.

Ela parecia não perceber ou não notar minhas olhadelas, mas Silvo vez ou outra me encarava, descrevia um nada discreto arco com a cabeça em direção à moça e sorria de forma louca e maliciosa.

Paramos depois de algumas horas. Aquelas pessoas, como aventureiros experientes deveriam ser mais acostumadas ao lombo de um cavalo, mas eu parecia muito mais à vontade sobre o baio do que eles sobre os imperiais, muito mais robustos, velozes e resistentes que meu velho pangaré. Apeei e preparamos acampamento, nada sofisticado, apenas três barracas armadas em cordas, uma fogueira acesa em uma vala e três turnos de guarda. Abri uma de minhas garrafas e deixei minha Salamandra Larápia correr livre por aí. Ela disse algum despautério que ignorei solenemente e apenas confiei em sua voz esganiçada e boca suja para nos avisar caso algo ruim se aproximasse.

Jantamos à luz das estrelas e ao beijo das nuvens baixas.

Orinde e Silvo começaram a conversar em uma língua diferente das línguas faladas na Arcádia. Uma língua com “ós” arrastados, palavras terminadas bruscamente, “uãns” e “t’pas” graciosamente colocados em sílabas bruscas, que saindo de suas bocas mais parecia um latido do que uma palavra propriamente dita. Ignorei a falta de cortesia e me concentrei em alguns documentos dados por nosso contratador. Vez ou outra, palavras indecorosas sobre mm e comentários jocosos sobre meu jeito de vestir, ou falar, ou cavalgar, ou olhar, ou o que quer que fosse rendiam sonoras gargalhadas. Sempre preferi me fazer de ignorante. Faz com que pessoas ignorantes se sintam mais à vontade perto de mim. Isso faz com que abram a boca com facilidade.

Eles não sabem o que estão fazendo aqui, o contratador não disse tudo que deveriam saber, apenas mandara duas pessoas jovens e metidas a espertas em uma missão de fim duvidoso e com recompensas pouco apetitosas.

Os comentários passam para o meu cheiro. Ao que parece ambos me acham “cheiroso” demais. Não sei se isso é um comentário bom ou ruim, mas começo a temer pela minha segurança, afinal ambos me olham como se eu fosse um pedaço suculento de pernil de javali. Meus pensamentos são interrompidos por um arroto em miniatura, um palavrão e som de um escarro. É Biltre, minha salamandra larapia. Derramando meio quilômetro de palavrões ela me informa que quatro homens se aproximam pelo matagal. Orinde e Silvo levantam-se num salto, não pela informação ouvida, mas por verem um lagarto avermelhado do tamanho da palma da mão falando com voz gutural e profunda. Ambos se benzem, beijam a guarda de suas armas e a palavra “bruxaria” só morre nos lábios do batedor, pois a luz de tochas mal cobertas denuncia a presença de dois homens.

Sacamos nossas armas. Empunho uma espada, presente de meu amado pai. Orinde gira um enorme machado, monstruoso e delicado ao mesmo tempo, enquanto Silvo desaparece nas sombras. Ouço o retesar da corda do arco. Biltre se recolhe à sua garrafa, sem que ninguém o veja.

Um dos homens se aproxima e nos encara. Ele não parece ser destas bandas. “São só dois estrangeiros” grita, “Então resolva isso logo”, recebe em resposta. O homem é rápido, saca a espada e vem. Tomba dois metros antes de nos encontrar, vítima de uma das flechas de Silvo. O outro leva a mão à cintura e saca uma pequena trompa. Lento demais. Orinde gira o machado e os olhos do homem se fecham para sempre. Atrás deles, um terceiro homem que ainda não havíamos visto soa o alarme. Ouvimos o bater de cascos e nos preparamos.

Devo me lembrar de diminuir o volume de álcool que dou a Biltre. O maldito ente nos alertou de quatro homens. Sete mais apareceram. Focada nos que pareciam mais fortes, Orinde girou o machado e cortou carne, ossos e tendões. Um cavalo tombou e apavorado, seu cavaleiro tentou fugir. Erro de principiante. Outros dois encontraram os criadores graças a flechas bem colocadas. Orinde tratou de despachar mais dois soldados em terra. Um homem truculento veio em minha direção. Quando se identifica um mago ou sacerdote, é comum que homens de armas foquem seus ataques neles, afinal, a mais básica magia pode ser um suporte valioso durante uma batalha e há ainda a idéia de que magos são frágeis e indefesos, ervas daninhas de um campo de batalha. Admito o fato de não sermos tão fortes quanto um guerreiro ou clérigo, mas eu já estive em combate. Já cavalguei nos campos varegues com espada em punho. Tenho apenas 23 anos, mas já lutei em mais paredes de escudos do que certamente qualquer um destes homens. Vi a deusa morte de perto, afaguei seu rosto e beijei-lhe a face.

Eu conheço a canção das espadas e mais importante que isso, conheço o nome verdadeiro da minha.

Uma torrente de tripas e sangue cozidos brotou em fúria do ventre de meu agressor. Aesterin, minha espada, sedenta de matança e feliz pelo júbilo da morte fez seu trabalho. Um pequeno truque de iniciantes fez o resto, preenchendo com fogo o buraco aberto pela lâmina. Aesterin encontrou outro alvo antes mesmo que eu percebesse, e um pequeno raio faiscando de meus dedos deixou o ar com cheiro estranho e o corpo do bastardo envolto em fumaça.

Infelizmente não fui rápido o bastante para me desviar de outro golpe e algum idiota arrancou um talho de minhas costas. Revidei com raiva, dor no olhar e sede de vingança, mas o golpe de espada foi aparado por um escudo. Orinde e Silvo terminavam seu serviço e meu agressor preparava uma nova estocada. Ele girou, errou por pouco meu braço esquerdo. Acertei-lhe um chute bem dado no meio das pernas e sei que o fiz bem, mas embora tenha reclamado de dor, o homem ainda estava de pé, girando o corpo com dificuldade, mas acertando a borda do escudo na minha mão da espada, jogando Aesterin a um metro de distância, preparando um novo golpe e fazendo com que eu me arrependesse de estar ali. Mais sangue jorrou. Mais um talho para minhas lembranças.

Perdi a paciência.

Prefiro não usar magia em combate tão próximo. Magos iniciantes acham que bolas de fogo e relâmpagos podem ajudar nos momentos difíceis, mas o rebote dado por elas pode atingir aliados e inimigos. Prefiro coisas mais sutis, com menor chance de falhas. Luz. Um jato potente e concentrado de luz na altura dos olhos. Antes que o agressor se recupere, um pouco mais de luz, agora um flash multi-colorido. Ele cambaleia, toca as feridas e aperta o estômago. Um jorro de vômito surge de sua garganta, e atordoado, ele cai. Com a fineza e honra de um bom vencedor chuto-lhe o rosto e piso em sua garganta por tempo o suficiente para fazê-lo perder a consciência. Bonito de se ver? Não. Eficiente? Não. Prazeroso? Não tenha dúvidas.

Dos dez homens, oito encontraram seu fim naquela noite. Outros dois ainda respiravam, mas apenas por nossa bondade e nada mais. Ambos lutaram bem e bravamente, sem a covardia de seus companheiros e por este motivo foram poupados, ou pelo menos por este motivo eu poupei meu agressor, que para minha surpresa não era um homem, mas uma mulher de pele morena, cabelos e olhos castanhos, nariz adunco e orelhas de abano. Era baixinha, magra e de olhar agressivo. Rosnou para mim alguns insultos, mas como sempre eu a ignorei. Ela era menos que um ser humano, era uma mestiça, mas lutara bem. Inquirimos os dois guerreiros. O homem, Argos, mostrou-se boca aberta, nos contando sobre um grande dono de terras os havia contratados, oferecido três moedas de prata por nossas cabeças. Cinco por Orinde viva e em condições de procriação. A garota, Aella, mostrou-se menos cooperativa, mas nada que um pouco de taumaturgia bem colocada não resolva. Em meio a lagrimas e tremores, mais informações despencam: eles foram infelizes em sua missão. Ao que parece a idéia era nos seguir até que conseguíssemos nosso saque e somente DEPOIS encerrar nossas carreiras, mas quando acampamos, preferiram nos atacar para economizar tempo. Péssima decisão.

*****

Cavalgamos por mais dois dias, uma insistente e pesada garoa cobre a estrada. Argos e Aella atrasam o passo andando atrás dos cavalos. Um cheiro pungente nos acompanha a cerca de meio dia, eriçando o pelo dos cavalos e embrulhando o estômago. Não sei do que se trata, mas todos os meus companheiros afrouxam as armas. O medo torna-se palpável e após algumas horas decidimos que é melhor deixar nossos prisioneiros livres e armados.
Chegamos enfim ao local de nossa campanha, ruínas de um antigo templo ou forte, não é possível dizer com precisão, principalmente depois que o tempo faz sua mágica e devora até a mais dura pedra. O por do sol acompanha nossa chegada e optamos por acampar dentro das ruínas após verificações iniciais. Vestígios de um enorme pátio, tão grande quanto um pequeno castelo ou o salão de um lorde, com muralhas de pedra ainda de pé mesmo que sem o esplendor de outrora, construção com blocos impossíveis de serem levantadas por homens comuns, unidas de forma tão perfeita que nem um fio de palha pode passar por suas junções. Construções do povo antigo que um dia dominou nossas terras: Os Yamí.

Limpamos o lugar para evitar vermes e armadilhas e montamos acampamento. O cheiro pungente que nos acompanhava morreu por alguns instantes, mas eu desconfiava que o que quer que fosse apenas usara o vento para se esconder. Silvo e Argos pareciam pensar o mesmo pois deixaram seus arcos e flechas em posições estratégicas perto do corpo. A noite chegou fria e molhada. Com dificuldade acendemos a fogueira e cozinhamos nossas rações. Inquirimos os prisioneiros – armados, libertos e perigosos – mas nenhuma nova informação foi obtida. O que sabemos é que são frísios mercenários, ex-escravos lutando pelo pão de cada dia, mesmo que regado a sangue. Ambos sem sorte pois Argos sempre seria um ex-escravo, mesmo que fosse um arcadiano e Aella sempre seria uma ex-escrava E mestiça, o que não lhe garantiria um bom casamento e ainda a impediria de entrar em várias cidades do reino. Ela me interessava, não como Orinde: a núbia era vistosa e corpulenta, sensual no andar e na fala. Adoraria fazer alguns mestiços com ela. Aella era magra, usava roupas demais, pele áspera e com os cabelos curtos como estava mais parecia um homem magro ou um jovem afeminado do que uma mulher. Era deselegante, desgrenhada e... O que foi isso?

Nossos olhares convergem para o mataréu próximo e dele uma imensa figura se aproxima rosnando. O fedor pungente desce como um soco no nariz e por pouco não vomito a ração. A besta fera, uma cruza de demônio e animal, com garras poderosas, presas brilhantes, pelo rajado e dorso grande como o de um estivador. Duas presas do tamanho de adagas se projetam do crânio.

Um Dentes-de-sabre.


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